17 agosto 2010

O dia das coisas serem seres


Era em uma floresta de troncos enormes e gramínea no chão. As copas se abriam no alto e a luz que por ali passava chegava límpida e suave. As árvores se davam aos punhados, em vilas de quatro ou cinco. E nelas havia dezenas de aberturas ovais em forma de portas e janelas. Eram ocas e vivas, de diâmetro gigantesco se comparado com as árvores comuns. Sim, eram casas vivas, onde moravam pessoas. Dentro dessas casas confortáveis, repletas de tecnologia viva, viam-se dispositivos orgânicos, membranas transparentes, torneiras de resinas, combustíveis e de líquidos potáveis. Noite adentro, vazava luz amarela dos quartos com seus frutos fosforescentes, bioluminescentes, pendurados nos tetos... Uma eco-casa, de uma eco-vila, de uma eco-metrópole. Arquitetura orgânica. Árvores-casas que foram projetadas pela engenharia-genética para nascerem de sementes e formarem paredes, cozinhas, quartos, salas, banheiros, mesas, cadeiras... Projetos biotecnológicos de casas que não foram construídas, mas foram plantadas e nasceram para serem povoadas. Uma cidade que se auto-gerou com energia solar.

De que tempo tratam essas imagens? De qual civilização?

Perguntas... Perguntas que surgem quando começamos a prestar mais atenção ao nosso cotidiano, ao tempo em que vivíamos e que vivemos.

O século XX foi o século da produção em série, dos automóveis, da lavagem cerebral, da televisão, do extermínio em massa dos campos de refugiados... O século XX foi o século da máquina. Do código de barra, do computador, da régua-de-cálculo que nos levou à lua em plena década de 60. Régua. De cálculo. Foi o século dos eletrodomésticos, da comida em lata, da pílula anti-concepcional e do preservativo de látex, do sexo feito em látex e dos hormônios femininos feitos por empresas multinacionais e vendido em cartelas contraceptivas. O século do petróleo e todo sangue derramado por ele, desastre humano. Ambiental, social, moral. O século XX, o século da bomba atômica, do LSD, dos ditadores e dos mendigos fazendo e pregando o apocalipse. Mas ele acabou. Com dois aviões espatifando o seu símbolo. Depois daquele dia em que a palavra delicadeza e a palavra brutalidade mudaram de sentido. Dia em que seis fanáticos venceram a gigantesca máquina de guerra do ocidente. Seis. Armados de estiletes de papel. Eis que nasce o século XXI, dolorido parto.

E o nosso século XXI? A ciência do século XXI é quase alquímica de tão... Nem sei o termo. Século XXI, século da engenharia genética, século não das máquinas, mas século dos organismos. Não de Einstein, mas de Bertalanffi. Século da diversidade cultural, da miscigenação racial, século da matemática fractal, do vegetarianismo, das viagens astrais do yôga-nidra. Século XXI... Longe das geringonças espaciais que explodem soltando fumaça e perto da tecnologia fotossintética de uma folha. O que guarda o século XXI? Eco-vilas de casas-árvore, geneticamente projetadas entre regatos e fontes de água mineral? Um mundo afogado pela mudança climática, com sarjetas imundas a transbordar e a fazer os sacos de lixo boiarem pelos bairros mais nobres de São Paulo? Pestes feitas em laboratórios caseiros, vendidos em kits pelo correio? Século XXI. Ah! Um mundo sem doenças... De pleno domínio sobre a vida. Domínio?! Um mundo diverso e lindo de pessoas de todas as culturas e raças, convivendo, aflorando outras racionalidades que não a cartesiana? Rico, por o valor ter deixado de estar nas coisas e ter passado a estar nos seres?

Coisas e seres. Século XXI. DNA. Os seres estão se tornando coisas por serem manipuláveis... E a vida? O que é a vida?

Árvore da vida. Sementes de apartamentos vendidas nos supermercados...

Ilustração: Rodrigo Fernandes Michelin

Fonte: http://pensandoverde.blogtv.uol.com.br/2010/08/17/o-dia-das-coisas-serem-seres

Nenhum comentário:

Postar um comentário