Muita gente esqueceu que Fernando Henrique, no auge da popularidade, ironizava o “nhém-nhém-nhém neoliberal” da oposição, desqualificando-a como um grupo de “fracassomaníacos”, qualificando-a de “neobobos”. Toda gente parece ter esquecido que foi o PSDB, de posse da maioria e da máquina, que alterou as regras do jogo, aprovando a reeleição, inclusive para o presidente que fora eleito sob outras regras.
Parece que esqueceram também que há dezesseis anos, Sérgio Motta falava de “um projeto de 20 anos” e que, em 2005, na onda do Mensalão, Jorge Bornhausen falava em “acabar com essa raça”. Referia-se aos petistas. Claro que isto não significa que o uso e o abuso dos mesmos mecanismos e que a rala postura republicana atual estejam corretos. Um erro não justifica mesmo o outro.
Mas, isto é, por outro lado, demonstração cabal que a civilidade política, a elegância e o espírito republicano, no Brasil, é menos uma questão de princípios do que a perspectiva de estar ou não de posse dos instrumentos de poder. É a confirmação indesmentível de que o “roto adora falar do rasgado”; de que se o casuísmo no olho do adversário é uma trave, tratamos o nosso como simples cisco. Na oposição, o PT usava os mesmos argumentos e queixumes que tucanos vocalizam hoje. E vice-versa.
É fato, Fernando Henrique, em 2002, manteve-se equidistante, quase neutro da eleição; a transição para o governo petista foi um exemplo de civilidade. E, claro, difícil será afirmar que agiria diferente tivesse ele a popularidade que hoje Lula ostenta; estivesse a economia do país no patamar atual. Pode ser que sim, mas é bom ponderar que também pode ser que não. Como não aconteceu, jamais saberemos. Ao contrário de Lula, FHC foi escondido da campanha de Serra – como, aliás, ainda é. Mas, que momentos de triunfalismo também lá houve, ah, isso houve!
A diferença talvez resida no fato de a ironia de FHC ser mais chique e a de Lula mais escrachada. Neste duelo, à classe média agrada mais o estilo “florete” de FHC, do que o “sabre” de Lula. Talvez mais uma questão de gosto, de estética, do que propriamente de ética. Mas, o embate que há aqui, houve ali.
O problema concreto não está em outro lugar. Esse caminho nos levará apenas à mitificação e à eterna crucificação do inimigo, absolvendo sempre nossas almas repletas de pecados e pecadilhos. A o busílis, o quiproquó, reside no Poder e na institucionalidade que possuímos (ou não) capaz de contê-lo. Ensina-nos a história e a leitura dos clássicos que naquilo em que a República se omite pelas leis e costumes, o Príncipe agirá pela sagacidade ou pela força.
Ensina-nos também a experiência vivida em cada microprocesso que a natureza humana necessita da contenção de seus ímpetos; requer regras, controles e vigília. E é isto que não temos. Culpa de quem? Ora, de todos. Por isso mesmo, o caso é mais sério que esse maçante conflito PT X PSDB, já tão antigo quanto cansativo; o Fla-Flu sem sentido que tem se tornado o centro do debate político nacional.
Toda eleição traz consigo uma inevitável tensão; rusgas, ataques, contra-ataques, às vezes, agressões físicas mesmo. É assim; debita-se tudo ao calor das disputas, à emoção, aos projetos em jogo, à frustração; a gana de competir, como se fosse um jogo que de fato é. Tudo certo. Mas, também deve apontar para o futuro.
A eleição passa e a vida continua. O eleito precisa governar; o derrotado, recuperar a autoestima, reinventar-se num novo projeto. Também setores que torceram, se engajaram, financiaram, apoiaram com recursos ou estrategicamente, precisam acordar no dia seguinte. “Vida que segue”, dizia João Saldanha.
O que chama atenção na presente eleição não é exatamente o grau de virulência – ainda que exacerbado --, mas justamente as pontes que aos poucos vão sendo incendiadas fazendo caminhos sem volta. O busílis e o quiproquó vão se eternizando, quando na verdade precisaríamos sair desse ciclo vicioso.
Seria um bom papel para o Congresso: reorganizar um centro político capaz de baixar a poeira, conter radicais, costurar acordos, estabelecer regras. Mas, parece que também nos faltará no Parlamento figuras assim, como foram Ulisses, Tancredo, Thales Ramalho, Petrônio Portela, Marco Maciel... Infelizmente, a decadência da atividade parlamentar e a ausência de bombeiros é o nosso maior problema; o busílis de verdade. E ninguém fala nisso.
Discutir mais profundamente nossos defeitos e anacronismos, repactuar regras do jogo, definir normas de convívio, consolidar instituições... Estes são os desafios; até porque o que sustenta de verdade o desenvolvimento econômico e social são as instituições. Sem elas, o retrocesso é inevitável. Elas, infelizmente, estão ausentes da preocupação dos discursos dos candidatos, dos analistas, da mídia, das classes sociais.
Tudo parece resumir-se a questões pessoais. No fim, amaldiçoa-se a escuridão, mas seria o caso de perguntar onde estão os fósforos e as velas. Precisamos acender as luzes. Quem fará isto?
*Carlos Melo, Cientista Político, doutor pela PUC-SP. Professor de Sociologia e Política do Insper. Autor de “Collor, o ator e suas circunstâncias”. Siga-me no Twitter: @CMeloPolítica
Fonte: http://eleicoes.uol.com.br/2010/ultimas-noticias/2010/09/15/analise-fhc-critica-hoje-em-lula-mesma-atitude-de-quando-era-presidente.jhtm
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