13 março 2013

O futuro de uma ilusão (Sigmund Freud)



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Havendo estabelecido desse modo nossas coordenadas, retornemos à questão das doutrinas religiosas. Podemos agora repetir que todas elas são ilusões e insuscetíveis de prova. Ninguém pode ser compelido a achá-las verdadeiras, a acreditar nelas. Algumas são tão improváveis, tão incompatíveis com tudo que laboriosamente descobrimos sobre a realidade do mundo, que podemos compará-las - se considerarmos de  forma apropriada as diferenças psicológicas - a delírios.

Do valor da realidade da maioria delas não podemos ajuizar; assim como não podem ser provadas, também não podem ser refutadas. Conhecemos ainda muito pouco para efetuar sua abordagem crítica. Os enigmas do universo só lentamente se revelam à nossa investigação, existem muitas questões a que a ciência atualmente não pode dar resposta. Mas o trabalho científico constitui a única estrada que nos pode levar a um conhecimento da realidade externa a nós mesmos. É, mais uma vez, simplesmente uma ilusão esperar qualquer coisa da intuição e da introspecção; elas nada nos podem dar, a não ser detalhes sobre nossa própria vida mental, detalhes difíceis de interpretar, nunca qualquer informação sobre as perguntas que a doutrina religiosa acha tão fácil responder.

Seria insolente permitir que nossa própria vontade arbitrária ingressasse na questão e, de acordo com nossa estimativa pessoal, declarasse esta ou aquela parte do sistema religioso como mais ou menos aceitável. Tais questões são momentosas demais para isso; poderiam ser chamadas de demasiadamente sagradas.

Nesse ponto, é de esperar que se encontre uma objeção. "Bem, então, se mesmo os céticos impenitentes admitem que as asserções da religião não podem ser refutadas pela razão, por que não devo acreditar nelas, já que possuem tanta coisa de seu lado - a tradição, a concordância da humanidade, e todas as consolações que oferecem?". De fato, por que não? Assim como ninguém pode ser forçado a crer, também ninguém pode ser forçado a descrer. Mas não nos permitamos ficar satisfeitos em nos enganarmos que argumentos desse tipo nos conduzirão pela estrada do pensamento correto. Se algum dia já houve um exemplo de desculpa esfarrapada, temo-lo aqui.

Ignorância é ignorância; nenhum direito a acreditar em algo pode ser derivado dela. Em outros assuntos, nenhuma pessoa sensata se comportaria tão irresponsavelmente ou se contentaria com fundamentos tão débeis para suas opiniões e para a posição que assume. É apenas nas coisas mais elevadas e sagradas que se permite fazê-lo. Na realidade, trata-se apenas de tentativas de fingir para nós mesmos ou para outras pessoas que ainda nos achamos firmemente ligados à religião, quando há muito tempo já nos apartamos dela.

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Os críticos insistem em descrever como "profundamente religioso" qualquer um que admita uma sensação da insignificância ou impotência do homem diante do universo, embora o que constitua a essência da atitude religiosa não seja essa sensação, mas o passo seguinte, a reação que busca um remédio para ela. O homem que não vai além, mas humildemente concorda com o pequeno papel que os seres humanos desempenham no grande mundo, esse homem é, pelo contrário, irreligioso no sentido mais verdadeiro da palavra.

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Trecho do livro "O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos (1927-1931), edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud"

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