27 janeiro 2012

Honrado trabalhador

Segue um trecho do livro "Livro de uma Sogra", do escritor Aluísio Azevedo, que foi publicado em 1895 mas parece muito atual.


O negociante, na comunhão do trabalho e da luta pela vida, representa apenas o cômodo papel de uma máquina de especulação movendo-se tão-somente pela avidez do lucro pecuniário. Para abraçar e exercer a sua carreira, ele não precisou pôr em contribuição as suas forças nervosas, estudando um curso difícil e fatigante; precisou nada mais do que exercitar-se materialmente na prática  do comércio. O indivíduo, sem técnica, ou habilitação para produzir qualquer trabalho, o indivíduo intelectualmente nulo, pode abraçar, de um dia para outro, a carreira comercial, e pode ser feliz. 
Não são raros os exemplos de negociantes ricos, considerados e poderosos, absolutamente analfabetos e rasos de inteligência. A ignorância e a vulgaridade intelectual são até requisitos indispensáveis ao bom êxito dessa carreira, tanto quanto a ilustração e o talento são qualidades negativas, porque os escrúpulos, as suscetibilidades, a fidalga e generosa linha moral de um espírito superior e cultivado, representam sérios impedimentos para o pronto alcance de sucesso na vida comercial. 
E, se descermos à análise do mercador de baixa escala, esse que por aí se chama “negociante a retalho”, então poderemos dizer que o homem de negócio é o que menos se gasta nervosamente no atrito do esforço comum, o único que nada produz absolutamente, o único por conseguinte que não trabalha, e no entanto o que mais ganha e acumula dinheiro. Esses formam uma classe especial, e especial é o prisma por que tudo vêem. Até a sua suposta honradez é singular: Não pagar, por exemplo, uma conta ao dia e à hora certa, é para um negociante o ato mais desonesto que se pode cometer, mas furtar no custo de qualquer objeto vendido, ou enganar o comprador, impingindo gato por lebre, isso é simplesmente fazer bom negócio. 
E tanto assim é que, esse mesmo traficante, que leva a iludir ao próximo todos os dias, a toda a hora, a todo o instante, quando encontra um mais velhaco, caso raro, que por sua vez consiga enganá-lo, comprando-lhe qualquer objeto a crédito e não pagando no prazo ajustado, revolta-se furioso e quer brigar, em vez de, por coerência e por honra aos seus princípios, atirar-se-lhe nos braços, exclamando: “Ora até que afinal, entre tantos tolos, encontro um esperto dos meus! Sejamos amigos!” 
A honra do negociante é diferente da honra dos outros homens. O militar, por exemplo, que não solver uma letra no dia do vencimento, não fica por isso desonrado, como não fica desonrado o negociante que levar um par de bofetadas; mas, se invertermos os casos, tão desonrado fica um como o outro. Isto quer dizer que a chamada honra do negociante não reside, como a  de toda a gente honesta, na consciência do respeito a si mesmo e na imputabilidade pessoal, mas no crédito abstrato da sua firma ou da sua casa de comércio; por isso que ele, mesmo sem levar bofetadas, mas cometendo toda a sorte de baixezas, enganando, mentindo, adulando o freguês para lesá-lo, continuará a ser um “homem honrado”, desde que pague em dia as suas contas. 
O mais interessante, porém, é que a sociedade brasileira, nem só lhe dá acesso, como ainda o coloca no primeiro plano da sua primeira camada, emprestando-lhe, como para justificar-se desse erro, aos olhos dos que não são traficantes comerciais, o título das duas qualidades que ele menos possui: — trabalhador e honrado. 
Honrado trabalhador! Mas trabalho quer dizer técnica e quer dizer produção; e o negociante não produz e só tem uma ciência — a de enganar o incauto consumidor, para apanhar-lhe, como as cocotes, o dinheiro que puder. E eu, cá por mim, nesta questão de exploração e gatunagem, prefiro, com franqueza, e acho menos nocivo e mais sincero, o gatuno que rouba o relógio ao transeunte ou arrebata um queijo da porta do súcio, porque esse é castigado pelo seu próprio aviltamento e arrisca a liberdade quando furta; ao  passo que o outro a nada se expõe e, em vez do castigo correcional, recebe em prêmio da sua próspera ganância todas as honras e todas as considerações da nossa melhor sociedade.

Para baixar a obra em PDF, entre no site do Domínio Público.

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