A nossa civilização é em grande parte responsável pelas nossas desgraças. Seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas. Sigmund Freud
09 julho 2012
Tentações Voluptuosas
Sempre me interessei por peixes e aves. Mesmo hoje em dia, tenho aquários nas minhas salas e laboratórios, e às vezes peço a meus alunos que cuidem deles. Eles me procuram para aprender sobre primatas e eu lhes empurro peixes! Mas faz parte de sua educação. Sendo estudantes de disciplinas antropocêntricas, como psicologia e antropologia, eles riem da idéia de que esses animais escorregadios da base da escala evolutiva possam ser interessantes. Mas os peixes têm muito a nos ensinar. E, assim como ocorre para cada criatura no planeta, o impulso de reproduzir-se está no cerne de sua existência.
Em um enorme aquário tropical construído na parede de minha casa, um peixinho causou-me profunda impressão. Vivendo com muitos outros peixes, grandes e pequenos, um macho e uma fêmea de kribensis começaram a fazer a corte. Os kribensis são ciclídeos que formam par para a vida toda. Essa família de peixes é conhecida pelo zelo com a prole. A barriga da fêmea adquiriu um tom vermelho-cereja, e ambos, macho e fêmea, ganharam vivas bordas alaranjadas na cauda e nadadeiras dorsais. Os dois tremularam e dançaram o dia todo e, juntos, enxotaram os outros kribensis. Como sempre, o macho perseguiu os machos, e a fêmea, as fêmeas. Demarcaram um canto do aquário com densa vegetação. A barriga da fêmea começou a avolumar-se. Não prestei muita atenção, pois os peixes que tentam reproduzir-se em um aquário com muitos outros geralmente perdem toda a prole, devorada pelo bando de famintos à sua volta. Por isso, um belo dia me surpreendi ao ver o macho tomando conta da cria. Não sei o que aconteceu com sua parceira.
Talvez no afã de manter limpo o seu canto, ele a tenha expulsado. Entre os ciclídeos é comum o macho cuidar da prole, e esse macho era um verdadeiro Davi contra muitos Golias. Mantinha longe peixes seis vezes mais compridos e centenas de vezes mais pesados do que ele. Compensava sua pequenez arremetendo, dando cabeçadas e incomodando quem chegasse perto. Depois de expulso o intruso, voltava para sua coleção de bolinhas nadadoras e se punha em determinada postura quase rente ao chão. Todos os filhotes reuniam-se então em um denso aglomerado embaixo dele.
Com o tempo, porém, os peixinhos tornaram-se mais aventureiros, e a tarefa de reuni-los foi ficando cada vez mais difícil. Outros peixes tentavam aproximar-se daqueles petiscos móveis, e o papai fazia hora extra. Acho que ele não comeu nada durante esse período, e provavelmente estava estressadíssimo. Após quatro semanas de valentes esforços, ele morreu. O macho outrora sadio e de cores vivas tornou-se um pálido cadáver que retirei do aquário. Mas sua prole crescera o suficiente para sobreviver, e acabei tendo mais 25 kribensis no aquário, muitos dos quais dei de presente.
Embora a vida desse macho tenha terminado prematuramente, foi um sucesso total: ele se multiplicou. Do ponto de vista biológico, a produção de descendentes vale todo o trabalho do mundo. Sua prole herdará a mesma propensão a empenhar-se, e o resultado será todo um ciclo de reprodução bem-sucedida. A seleção natural elimina os que fazem corpo mole ou são avessos ao risco; tais indivíduos não terão muitos genes na geração seguinte. Meu kribensis macho claramente recebeu seus genes de uma longa linhagem de pais e avós heróicos, e fielmente levou avante a tradição.
Conto essa história para mostrar que, no fundo, o que fazemos em nossa sociedade, ou o que os bonobos fazem na deles, não é diferente do que todos os outros animais fazem. Hoje em dia, obviamente, as pessoas limitam o tamanho da família. Muitos nem têm filhos. Mas os 6 bilhões de seres humanos do mundo não estariam onde estão se a reprodução não fosse absolutamente essencial à nossa evolução. Cada característica humana origina-se de ancestrais que conseguiram transmitir seus genes. Nosso quadro evolutivo só difere do de um peixe porque nos reproduzimos de um jeito muito mais complicado. Vivemos em grupo, criamos, alimentamos e educamos nossos filhos por anos, buscamos status e privilégios para eles, guerreamos, lutamos contra a endogamia, legamos bens, e assim por diante. A sobrevivência além da própria reprodução pode não importar para um peixe, mas é parte importante de nossa rede social e explica o curioso fenômeno da menopausa como o modo que a natureza encontrou para que as mulheres mais velhas possam ajudar a cuidar dos filhos de seus filhos. Com sociedades muito mais complexas que a dos peixes, e um tanto mais complexas que as dos outros primatas, tivemos de expandir a capacidade do nosso cérebro para sermos mais espertos que todos à nossa volta. Mas, fundamentalmente, continuamos a ser indivíduos que buscam a maior representação genética possível na geração seguinte.
O grande tema da natureza permite-nos entender o comportamento dos humanos e dos bonobos, reconhecendo que ambos lutam pelo mesmo fim por diferentes meios. Em um lance bemsucedido para barrar o infanticídio, evoluiu entre os bonobos uma sociedade sexualizada e dominada pelas fêmeas na qual a paternidade é um mistério. É difícil, ao descrever essa sociedade, evitar a terminologia que criamos para nos referir à nossa própria vida sexual: palavras como "promíscuo", "livre" ou "hedonista", termos que dão a impressão de que esses primatas estão fazendo algo errado ou alcançaram um grau inédito de emancipação. Mas não é nada disso. Os bonobos fazem o que fazem simplesmente porque isso permite a sobrevivência e a reprodução ótimas no meio em que vivem.
Nossa evolução seguiu rumo diferente. Aumentando a certeza sobre a paternidade, abrimos caminho para um envolvimento ainda maior do pai nos cuidados com os filhos. No processo, tivemos de limitar o sexo fora da família nuclear. Até nossos testículos pequenos contam uma história de maior compromisso
e liberdade refreada. A livre troca de parceiros não pode ser tolerada em um sistema reprodutivo como esse. Assim, domar a sexualidade tornou-se uma obsessão humana, a ponto de algumas culturas e religiões determinarem a remoção de parte dos genitais femininos ou equipararem o sexo em geral com o pecado.
Durante boa parte da história do Ocidente, os seres humanos mais puros, mais enaltecidos, foram o monge abstinente e a freira virgem. Mas a supressão da carne nunca é completa. Acho muito revelador que os sonhos dos eremitas, que viviam a pão e água, tivessem por tema donzelas voluptuosas, e não fartas refeições. Para os machos, o sexo sempre está em primeiro lugar, como meus chimpanzés demonstram sempre que há uma fêmea com genitais intumescidos. Quando amanhece, tamanha é sua ansiedade de sair da jaula para um dia de atividade e divertimento que podemos oferecer qualquer fruta que eles normalmente apreciam e eles passarão ao largo. A mente cheia de testosterona não se desvia de seu único propósito.
Para os machos, a obsessão por sexo pode ser universal, mas fora isso diferimos notavelmente dos nossos parentes próximos. Transferimos o sexo da esfera pública para a nossa cabana ou quarto, a ser praticado apenas no âmbito da família. De modo nenhum somos fiéis a tais restrições, mas elas são um ideal humano universal. O tipo de sociedade que construímos e valorizamos é incompatível com um estilo de vida como o dos bonobos ou o dos chimpanzés. Nossas sociedades estruturam-se para o que os biólogos chamam de "reprodução cooperativa", ou seja, vários indivíduos trabalham juntos em tarefas que beneficiam o todo. Além de cooperarem com as mulheres na supervisão dos mais jovens, os homens executam trabalhos coletivos, como caçar e defender o grupo. Assim a comunidade realiza mais do que cada indivíduo poderia esperar fazer sozinho, como, por exemplo, impelir uma manada de bisões penhasco abaixo ou puxar pesadas redes de pesca. E tal cooperação depende da oportunidade de todos os homens se reproduzirem. É preciso que cada homem tenha interesse pessoal no resultado do esforço cooperativo, ou seja, uma família para quem levar o produto do trabalho. Isso também significa que os homens precisam confiar uns nos outros. Muitas de suas atividades os mantêm dias ou semanas afastados da companheira. Só com a garantia de que ninguém será traído os homens se disporão a partir juntos para uma guerra ou uma viagem de caça.
O dilema de como engendrar a cooperação entre concorrentes sexuais foi resolvido de um só golpe com o estabelecimento da família nuclear. Esse esquema ofereceu a quase todo homem a chance da reprodução e, portanto, incentivos para que ele contribuísse para o bem comum. Assim, devemos ver a manutenção do par humano como a chave para o incrível nível de cooperação que marca nossa espécie. A família, e os costumes sociais que a embasam, permitiu-nos levar os vínculos masculinos a um novo patamar, desconhecido em outros primatas. Preparou-nos para empreendimentos cooperativos em grande escala que possibilitaram a conquista do mundo: de instalar ferrovias através de um continente a formar exércitos, governos e corporações globais. Na vida diária podemos separar as esferas social e sexual, mas na evolução da nossa espécie elas são intimamente ligadas.
O que tanto nos fascina nos bonobos é que eles não necessitam separar essas esferas; alegremente misturam o social e o sexual. Podemos invejar esses primatas por sua "liberdade", mas nosso sucesso como espécie está inextricavelmente vinculado ao abandono do estilo de vida bonobo e a um controle mais rigoroso das expressões sexuais.
Trecho do livro "Eu, primata", de Frans de Waal
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