Os recentes fatos ocorridos no campus da USP são traduzidos pela mídia como um mero caso de infração criminal pelo uso de drogas ilícitas na universidade.Enquadrados pela Polícia Militar ao serem flagrados fumando maconha, os estudantes teriam partido para o vandalismo gratuito, com agressões contra policiais e destruição do patrimônio público, impondo à sociedade que sustenta a USP um território privilegiado acima das leis e da Constituição.
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Quem estuda, trabalha e leciona na USP e acompanha a história da universidade nas últimas décadas, sabe que esta redução do problema a uma simples ocorrência policial é falsa e manipuladora.
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O atual reitor João Grandino Rodas, chegou à reitoria nos mesmos moldes da eleição de Antônio Hélio Vieira em 1981, indicação do governador Paulo Maluf que desrespeitava o primeiro colocado na lista sêxtupla escolhido pela comunidade; o ex-governador José Serra, num ato de reverência a seu antigo antecessor, que é hoje procurado pela Interpol, desprezou a escolha da universidade, que indicara Glaucius Oliva como primeiro da lista tríplice, dando posse a Rodas.
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Ora, a alguém que já chega à reitoria deslegitimado desta forma não deve causar surpresa a resistência às suas ações,ainda mais que o reitor imposto à USP alcançou o cargo com a imagem indesejada da inédita invasão da polícia na Faculdade de Direito São Francisco; não por caso recentemente Rodas foi considerado “persona non grata” pela comunidade das Arcadas após tentar privatizar salas e desestruturar a centenária biblioteca da escola.
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Ao longo dos anos 80 e 90 as lutas pela democracia na universidade pública cresceram em sintonia com as conquistas irreversíveis da sociedade brasileira, representadas pelas Diretas Já e eleições populares em todos os níveis, do âmbito municipal ao federal; neste sentido, a antiga lista sêxtupla para a eleição do reitor foi reduzida a tríplice, e depois disso a pressão por eleição direta para reitor começou a figurar constantemente nos debates acadêmicos; esperava-se ao menos que o governo respeitasse a tradição encerrada com Maluf e indicasse o primeiro da lista.
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Paralelo a tudo isso, o sindicalismo de trabalhadores das universidades estaduais se fortaleceu, representando resistência à desvalorização imposta pelos governos tucanos ao longo dos últimos 16 anos. Em outro lado, as associações de docentes tiveram participação ativa em atos de repúdio às políticas autoritárias do governo paulista representado pelas reitorias.
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O resultado geral deste cenário se resume às inúmeras greves, ocupações de prédios públicos com invasões da Polícia Militar, demissões de sindicalistas, indiciamento e expulsão de estudantes, fatos emoldurado por atos de repúdio à truculência da reitoria por notáveis da USP, como Antonio Candido e Marilena Chaui entre outros,
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Rodas tem demonstrado uma estratégia eficaz no processo de esmagar a resistência à vontade do governo estadual: logo ao assumir provocou habilmente uma divisão no movimento de docentes e trabalhadores ao quebrar a isonomia e conceder um reajuste salarial aos primeiros, desarticulando assim o poder de oposição do sindicato. Além disso, aparelhou a Assessoria de Imprensa da Reitoria, que vem sistematicamente doutrinando a comunidade interna com e-mails e boletins que buscam jogar estudantes e professores contra os opositores aos objetivos autoritários da reitoria. A mesma assessoria que vende a imagem hoje na mídia de que os estudantes são nada mais do que baderneiros, vagabundos e infratores que dilapidam o patrimônio público apenas pelo torpe motivo de fumar maconha livremente no campus.
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Quanto ao corpo discente da USP, há um universo emergente de meninos e meninas recém ingressados na graduação, notadamente na FEA e na POLI que, nascidos em meados dos anos 90 desconhecem as lutas pela liberdade de expressão política travadas na universidade a partir dos anos 60; este contingente é focado na competição profissional, para quem o mais importante é o mercado de trabalho. Movimento estudantil, militância política e democracia são palavras desconhecidas que pouco lhes interessam e o que os ocupa é a conquista rápida do diploma e a luta por uma carreira; pouco lhes importa se o reitor foi escolhido pela comunidade ou não, ou se os salários dos professores foram defasados nas últimas décadas, nem mesmo que não haja infraestrutura para um ensino de qualidade. Quando questionados sobre o autoritarismo da reitoria e a militância dos estudantes, os “meninos do mercado”, usando de sua incipiente formação pré-vestibular consideram “sem noção”, como eles costumam falar, pensar em repressão 25 anos após o fim da ditadura; assim, os manifestantes não passariam de paranóicos com uma saudade patética de maio de 68. Para a “galera pró-mercado”, Vladmir Herzog é um ilustre desconhecido e “o cara” da vez é Steve Jobs: a única revolução que conhecem é a digital, representada por IPads e IPhones, que lhes permitem atualizar o Facebook e tuitar no trânsito.
Para os “órfãos de Jobs”, o mais importante são os confortos imediatos do dia a dia no campus: o restaurante universitário, o ônibus circular; a bolsa-alimentação; o passe escolar, a conexão wifi e todas as vantagens de consumo que o “shopping USP” possa oferecer. O problema é que tudo isso fica ameaçado pelas greves e expedientes de luta pela democracia na universidade. Sugar o que a universidade oferece, sim, participar da construção da mesma, nunca. Rodas, competente estrategista que é, sabe que usando as insatisfações de consumo deste público, em combinação com a exposição na mídia dos grandes jornais e estações de TV, pode jogar a opinião pública contra os manifestantes e desarticular a resistência.
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E é o que ele tem feito com inegável maestria: instrumentalizando a comoção coletiva pelo assassinato de um estudante da FEA, mobiliza o Conselho Universitário, devidamente espaldado pela “meninada do mercado” e institucionaliza a militarização do campus. Em seguida divulga que não tem autoridade para tirar a PM da USP pois quem decidiu tudo foi o Conselho Universitário, jamais o reitor. Alheio às liberdades individuais conquistadas em décadas de lutas legítimas, nivelou o ambiente da USP ao clima das numerosas faculdades de freiras que ele próprio cursou na juventude. Os grandes professores da USP, muitos deles testemunhas da efervescência cultural e política da universidade em seu tempo de formação, e que vivenciaram o uso de maconha na juventude, assistem impassíveis a transformação do campus em um tipo de internato colegial.
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O que chama a atenção é a ambiguidade do governo Alckmin: na conhecida Cracolândia, reduto de consumidores de crack no centro paulistano, o governo faz “cara de paisagem” e a PM tem a orientação de tratar o caso como um “problema de saúde”: causa surpresa observar viaturas policiais percorrendo o local completamente alheias ao consumo de droga. (http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2011/11/multidao-e-flagrada-c... ) Já no caso dos garotos flagrados na USP o discurso do governador é de que trata-se de um “caso criminal” que depende de ação policial, bombas de gás e balas de borracha, parecer que se choca com as campanhas pela descriminalização lideradas pelo decano de seu próprio partido, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
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Rodas sabe que reduzindo a problemática a um simples evento criminal pode justificar e implantar definitivamente um aparelho de coerção às lutas estudantis e sindicais: com a PM no campus poderia reprimir as greves e movimentos de oposição às gestões impostas pelo governo de São Paulo. Para o reitor, moleques levados apertando baseadinhos é o de menos, o que o incomoda realmente é a resistência organizada a seu projeto autoritário, que não prevê negociação e diálogo em seu processo. As línguas maldosas poderiam observar que talvez o reitor tenha desistido da carreira diplomática por absoluta falta de talento para o ofício; mas o que interessa à universidade, mais do que ironia é o entendimento objetivo do conflito na USP.
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Em entrevistas para os meios de comunicação, o reitor articula um impecável discurso pacifista, onde de um lado estariam os homens de bem e os estudantes aplicados, que são a maioria, e do outro, a turma do mal e os maus alunos, que constituiriam uma minoria radical : como estes se recusariam a agir dentro da lei, lava as mãos, vítima que seria desta gente violenta, e abandona as prerrogativas do cargo entregando o destino da USP nas mãos da polícia e da justiça.
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Daltson Takeuti, graduando do Departamento de Música da USP.
Fonte: Diário da Classe
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